quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Tradução, anglofonia e políticas de "verdade": um tuga na Arábia

Vítor Pereira (VP) deitou os lábios no trombone e agora percorre as redes sociais e os media com a sua "explosão" cómico-trágica de tuguice em força: My words come from my heart!

Num assomo reivindicativo, Vítor Pereira vincula à sua pessoa, ao mesmo tempo, a propriedade sobre a análise e a autoridade no testemunho de jogo, na boa tradição tuga. Ignora de imediato - e com alguma arrogância, há que dizer - as instruções do moderador, que pede uma descrição "técnica"; não percebo tampouco como uma avaliação da tecnicidade em campo pode ou deve ignorar a prestação a título individual deste ou daquele jogador, pelo que há um julgamento apressado do moderador quando tenta "calar" VP quando este prontamente começa a chamar os bois pelos nomes.

O jogo em questão foi a 13 de Dezembro, contra o Al-Ittifaq (Ettifaq? as grafias alternam). Não encontrei registo vídeo do jogo mas o importante foi a expulsão de Mansour aos 23' aparentemente, no testemunho de VP, provocado por uma reação infantil à provocação de outro jogador, que resultou num 10 contra 11 e a evidente derrota. 
 
VP não é o único português na equipa (o atacante Luís Leal faz parte do plantel) nem é o clube adverso a treinadores importados: apenas 5 treinadores foram nativos da Arábia Saudita num clube que conta, inclusivamente, com a mãe de todos os personagens Luiz Felipe "E o burro sou eu?" Scolari na sua história. É por isso apressado falar aqui de conflito de culturas ou mesmo de uma afirmação patriótica de contornos nacionalistas: a história do clube é de resto a história dos clubes no mundo, pontos confluentes de uma economia de jogadores pautada pela transnacionalidade do networking futebolístico.

Nesta mediação, sobra o english macarrónico como plataforma linguística, certamente, à medida das possibilidades dos agentes em cena e de acordo com as regras do jargão, importado as is ("What I saw... in first place, I saw a bad professional player."). A tradução escala progressivamente entre o arábico, o inglês mais apurado do moderador, o inglês menos apurado do VP e o português na sua cabeça, manifesto nas patadas gramaticais que reforçam o caricato da instalação.


I speak what I saw, no what you want that I want to see. A presença do tradutor conclui o trágico encenado entre o real testemunho do treinador, a tradução proto-english e o filtro falhado do moderador. A frustração do homem que reverte para arábico o intraduzível espetáculo que certos jornalistas, ao que parece, dificilmente entenderam; o sussurrar impotente a um treinador tuga determinado em se afirmar. No futebol, como na antropologia, quem delega a informação segura a mediação do absurdo. Como na antropologia, fico curioso quanto à tradução árabe que foi devolvida aos jornalistas (como na antropologia, omitida na western media) e quanto ao sussurro no ouvido de VP. A tarefa do tradutor é ingrata, porque essa é a natureza da comunicação, seja aqui ou seja na Arábia.

Sem comentários:

Enviar um comentário